além do corpo
a voz
além de nós
o silêncio
o momento soturno
é finito
aqui no corpo
a sós
um coração sem Gal
é lamento
um objeto não identificado
além do corpo
a voz
além de nós
o silêncio
o momento soturno
é finito
aqui no corpo
a sós
um coração sem Gal
é lamento
um objeto não identificado
E eu tenho em mim as distâncias da vida, o mundo incomunicável e os excessos incompreensíveis.
(como a outrar-me quem sabe em algum primo do Álvaro de Campos ou pessoa que o valha)
sobre uma colina, diante do mar distante
se escrevo estas palavras assim,
desta forma – em versos –
é porque pretendo, convenhamos,
pôr nestes versos algo de qualquer coisa
como poesia
quisera eu ser poeta
– ou, pelo menos, que me tomassem por poeta –
isso (de me tomarem por poeta)
é qualquer coisa que a mim proporcionaria talvez uma alegria,
uma vez que, apesar de que também a tristeza
e a melancolia se atribuem aos poetas,
haveria de se me dar a pensar que,
tomando-me por poeta, em mim veriam alguma graça
não que me quedem os gracejos, que divertem, por vezes,
pois que deles não faço questão, porém que essa graça
a que me refiro, me pudesse luzir através do olhar,
do gesto, da voz ou do manejo do chapéu
quisera eu
no entanto, apesar de que vivo
e acho graça de uma coisa ou outra,
sei que muitas vezes não me assenta bem o próprio corpo;
parece com frequência que me falta espaço dentro dele
e não vejo como expandir o que em mim me aperta desse modo
já ouvi dizer por gente que mal conheço
– que, aliás, é todo o tipo de gente que se me dá a conhecer –
que lhes faz bem eventualmente voltar ao seu lugar,
passear ao fim da tarde, ou de manhã, ou de madrugada,
na rua da sua infância, no velho bairro em que nasceu
tal coisa me chega com graça,
acho bonito
tenho vontade de tomar para mim o sentimento,
de inventar essa sensação como se fosse um passado meu,
porém nem isso se me dá:
a rua, o bairro em que nasci, ou qualquer outra, ou qualquer outro,
todas são velhas ruas, todos são os caminhos da minha memória,
mesmo aqueles em cujo chão meus passos jamais soaram
os passos são sempre os meus, desde os tempos da infância
e os levarei comigo onde quer que eu vá
quisera eu pertencer a algum lugar, ouvir qualquer coisa e lembrar;
o chiado de uma chaleira, a mãe, o brado de alguém que saúda um amigo pela rua, o pai
uma risada, a tia, um freio de bicicleta, o primo
quisera eu que algum vento me fizesse sentir de novo
como numa viagem de férias em que já não me sentia mais tão criança,
ou que algum perfume de repente me abraçasse
como o daquela namorada que tanto amei (e que talvez ame ainda)
quisera eu pertencer a um lugar, ou ser por ele pertencido
mas assim não é em mim, assim não sinto e não sei ser
apenas levo meu corpo aonde quer que eu vá, e em todo lugar somos eu
e esse corpo que vai comigo a toda parte
quisera eu pertencer a um lugar
mas nenhum lugar é meu
assim como cada verso, só por ter aparência e forma
não traz em si, por si, um poema
também eu sigo assim, pelos dias, debaixo do sol, das noites, das luas
cúmplice do eterno céu, sempre acima de tudo e de mim
como se fosse eu mesmo, inelutavelmente, o meu próprio tema
Gabriel Voser
SOUVENIR
Para me lembrar deste lugar
Desta viagem
Destas companhias
Do lugar estranho que é o Fim do Mundo
Do lugar sempre prestes a acabar
Por mim ou por si
Para me lembrar de que o Fim do Mundo
Foi o máximo de céu
O máximo de inferno
E que ainda assim me fotografei
E sorri
Para lembrar que esta foi a minha única viagem
Para te lembrar de mim
Quando eu não estiver mais
Aqui.
A BOLA AZUL DE YURI GAGARIN
Que tudo tenha fim
Menos a bola de Yuri Gagarin
Não é plana
Como dizem
Os quadrados
Bola oval
Safira azul
Com alguma terra
Incrustada
Nave e casa
Onde nos ferimos
Como quem proclama
Que não merece
A joia do universo
Refletida
Na pupila azul
De Gagarin
“Através da janela
Eu vejo a Terra
O chão é claramente identificável
Eu vejo rios e
As dobras do terreno
Tudo é tão claro”.
TERRA MINGUANTE
Sento-me na superfície
Da Lua
Traindo mais leis
Que as gravitacionais
A poeira lunar
Por vinte e oito dias
Aumenta o contraste
Com o azul
Tudo perdido
Entrego-me ao sonho:
Durmo em crateras e
Avisto um planeta
Terra nova
Terra crescente
Terra cheia
Terra minguante.
Poemas do livro Estive no fim do mundo e me lembrei de você, Adriane Garcia, ed. Peirópolis, 2021. Coleção Madrinha Lua.
Inventário
Vamos ao inventário:
Uma nota de dois reais
E as moedas
Duas de um real
Duas de cinquenta centavos
Dezoito de dez centavos
Dez de cinco centavos
Total:
Sete reais e trinta centavos
A riqueza de um homem
Não tem limites
Se não dá
Para um banho de sais
E dois escravos
Veja como incha o abdômen
Uma fatia de pão
Amanhecido
Estamos todos tão parvos
Da fome e da dor
Convencidos
Carlos Eugênio Vilarinho Fortes
penso
peso
peso da alma
pena suspensa
o silêncio palavra
o contrapeso átrio
você
passará
As pessoas bebem pra ficarem sóbrias de si
As pessoas fogem, do mundo, do ritmo, pra caírem em si
As pessoas pensam, resvalam, se equilibram, se entorpecem
Porque não dá
A histeria calada, surda, contida , dissimulada, pra disfarçar
Eu, tu, a lua, metade, presente
Choro, desgosto, incógnita
Dolência
Grita, cresce, voa
Tu, que acende estrelas, e me sustenta
Com teu ombro, escuta, alento
Suporta, se ergue
Confia
No teu
Imenso, largo, encantador
Se não fosse tu
Se não fosse o teu
Eu
Esses versos não te escreveria
Por isso, respira
Acolhe-te
Rega-te, de luz, de ser,
Porque a nossa força
Soma
minha verdade só entra pelas frestas: impaciente
e doida ricocheteando contra filtros teias bordas
como uma senhora agoniada nos fundos de uma
igreja junto à parede externa do confessionário a
chorar a sorrir com olhos fixos na barra da batina
do padre e os dedinhos furando as grelhas: entra
estrambólica como uma beata reclusa há décadas
dentro do próprio peito a gestar cabelos brancos
e uns pés de galinha gigantes ao redor dos olhos
a levar ovos numa sacola de plástico reutilizável a
direcionar guinchos sem coerência a quem passa:
já que isso de beleza e de elegância é para outras
mulheres o que é meu eu levo guardado no bolso
em papel envelhecido escrito em caneta bic preta
para mostrar e ler aos outros na parada de ônibus
mas é de uma feiurinha tão agradável que até dói
(Amanda Vital)