(como a outrar-me quem sabe em algum primo do Álvaro de Campos ou pessoa que o valha)
sobre uma colina, diante do mar distante
se escrevo estas palavras assim,
desta forma – em versos –
é porque pretendo, convenhamos,
pôr nestes versos algo de qualquer coisa
como poesia
quisera eu ser poeta
– ou, pelo menos, que me tomassem por poeta –
isso (de me tomarem por poeta)
é qualquer coisa que a mim proporcionaria talvez uma alegria,
uma vez que, apesar de que também a tristeza
e a melancolia se atribuem aos poetas,
haveria de se me dar a pensar que,
tomando-me por poeta, em mim veriam alguma graça
não que me quedem os gracejos, que divertem, por vezes,
pois que deles não faço questão, porém que essa graça
a que me refiro, me pudesse luzir através do olhar,
do gesto, da voz ou do manejo do chapéu
quisera eu
no entanto, apesar de que vivo
e acho graça de uma coisa ou outra,
sei que muitas vezes não me assenta bem o próprio corpo;
parece com frequência que me falta espaço dentro dele
e não vejo como expandir o que em mim me aperta desse modo
já ouvi dizer por gente que mal conheço
– que, aliás, é todo o tipo de gente que se me dá a conhecer –
que lhes faz bem eventualmente voltar ao seu lugar,
passear ao fim da tarde, ou de manhã, ou de madrugada,
na rua da sua infância, no velho bairro em que nasceu
tal coisa me chega com graça,
acho bonito
tenho vontade de tomar para mim o sentimento,
de inventar essa sensação como se fosse um passado meu,
porém nem isso se me dá:
a rua, o bairro em que nasci, ou qualquer outra, ou qualquer outro,
todas são velhas ruas, todos são os caminhos da minha memória,
mesmo aqueles em cujo chão meus passos jamais soaram
os passos são sempre os meus, desde os tempos da infância
e os levarei comigo onde quer que eu vá
quisera eu pertencer a algum lugar, ouvir qualquer coisa e lembrar;
o chiado de uma chaleira, a mãe, o brado de alguém que saúda um amigo pela rua, o pai
uma risada, a tia, um freio de bicicleta, o primo
quisera eu que algum vento me fizesse sentir de novo
como numa viagem de férias em que já não me sentia mais tão criança,
ou que algum perfume de repente me abraçasse
como o daquela namorada que tanto amei (e que talvez ame ainda)
quisera eu pertencer a um lugar, ou ser por ele pertencido
mas assim não é em mim, assim não sinto e não sei ser
apenas levo meu corpo aonde quer que eu vá, e em todo lugar somos eu
e esse corpo que vai comigo a toda parte
quisera eu pertencer a um lugar
mas nenhum lugar é meu
assim como cada verso, só por ter aparência e forma
não traz em si, por si, um poema
também eu sigo assim, pelos dias, debaixo do sol, das noites, das luas
cúmplice do eterno céu, sempre acima de tudo e de mim
como se fosse eu mesmo, inelutavelmente, o meu próprio tema
Gabriel Voser