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Sobre profleitao

Coordenador do LAPROL - Lab. de Processamento Linguístico da UFPB. Escritor e Poeta!

Poema 1 de Gabriel Voser

Imagem: Pinterest.com

 

(como a outrar-me quem sabe em algum primo do Álvaro de Campos ou pessoa que o valha)

sobre uma colina, diante do mar distante

se escrevo estas palavras assim,

desta forma – em versos –

é porque pretendo, convenhamos,

pôr nestes versos algo de qualquer coisa

como poesia

quisera eu ser poeta

– ou, pelo menos, que me tomassem por poeta –

isso (de me tomarem por poeta)

é qualquer coisa que a mim proporcionaria talvez uma alegria,

uma vez que, apesar de que também a tristeza

e a melancolia se atribuem aos poetas,

haveria de se me dar a pensar que,

tomando-me por poeta, em mim veriam alguma graça

não que me quedem os gracejos, que divertem, por vezes,

pois que deles não faço questão, porém que essa graça

a que me refiro, me pudesse luzir através do olhar,

do gesto, da voz ou do manejo do chapéu

quisera eu

no entanto, apesar de que vivo

e acho graça de uma coisa ou outra,

sei que muitas vezes não me assenta bem o próprio corpo;

parece com frequência que me falta espaço dentro dele

e não vejo como expandir o que em mim me aperta desse modo

já ouvi dizer por gente que mal conheço

– que, aliás, é todo o tipo de gente que se me dá a conhecer –

que lhes faz bem eventualmente voltar ao seu lugar,

passear ao fim da tarde, ou de manhã, ou de madrugada,

na rua da sua infância, no velho bairro em que nasceu

tal coisa me chega com graça,

acho bonito

tenho vontade de tomar para mim o sentimento,

de inventar essa sensação como se fosse um passado meu,

porém nem isso se me dá:

a rua, o bairro em que nasci, ou qualquer outra, ou qualquer outro,

todas são velhas ruas, todos são os caminhos da minha memória,

mesmo aqueles em cujo chão meus passos jamais soaram

os passos são sempre os meus, desde os tempos da infância

e os levarei comigo onde quer que eu vá

quisera eu pertencer a algum lugar, ouvir qualquer coisa e lembrar;

o chiado de uma chaleira, a mãe, o brado de alguém que saúda um amigo pela rua, o pai

uma risada, a tia, um freio de bicicleta, o primo

quisera eu que algum vento me fizesse sentir de novo

como numa viagem de férias em que já não me sentia mais tão criança,

ou que algum perfume de repente me abraçasse

como o daquela namorada que tanto amei (e que talvez ame ainda)

quisera eu pertencer a um lugar, ou ser por ele pertencido

mas assim não é em mim, assim não sinto e não sei ser

apenas levo meu corpo aonde quer que eu vá, e em todo lugar somos eu

e esse corpo que vai comigo a toda parte

quisera eu pertencer a um lugar

mas nenhum lugar é meu

assim como cada verso, só por ter aparência e forma 

não traz em si, por si, um poema

também eu sigo assim, pelos dias, debaixo do sol, das noites, das luas

cúmplice do eterno céu, sempre acima de tudo e de mim

como se fosse eu mesmo, inelutavelmente, o meu próprio tema  

Gabriel Voser

Poemas de Adriane Garcia (livro novo)

SOUVENIR

Para me lembrar deste lugar

Desta viagem

Destas companhias

Do lugar estranho que é o Fim do Mundo

Do lugar sempre prestes a acabar

Por mim ou por si

Para me lembrar de que o Fim do Mundo

Foi o máximo de céu

O máximo de inferno

E que ainda assim me fotografei

E sorri

Para lembrar que esta foi a minha única viagem

Para te lembrar de mim

Quando eu não estiver mais

Aqui.

A BOLA AZUL DE YURI GAGARIN

Que tudo tenha fim

Menos a bola de Yuri Gagarin

Não é plana

Como dizem

Os quadrados

Bola oval

Safira azul

Com alguma terra

Incrustada

Nave e casa

Onde nos ferimos

Como quem proclama

Que não merece

A joia do universo

Refletida

Na pupila azul

De Gagarin

“Através da janela

Eu vejo a Terra

O chão é claramente identificável

Eu vejo rios e

As dobras do terreno

Tudo é tão claro”.

TERRA MINGUANTE

Sento-me na superfície

Da Lua

Traindo mais leis

Que as gravitacionais

A poeira lunar

Por vinte e oito dias

Aumenta o contraste

Com o azul

Tudo perdido

Entrego-me ao sonho:

Durmo em crateras e

Avisto um planeta

Terra nova

Terra crescente

Terra cheia

Terra minguante.

Poemas do livro Estive no fim do mundo e me lembrei de você, Adriane Garcia, ed. Peirópolis, 2021. Coleção Madrinha Lua.

Poema 01 de Carlos Eugenio Vilarinho Fortes

Imagem: Pinterest.com

Inventário

Vamos ao inventário:

Uma nota de dois reais

E as moedas

Duas de um real

Duas de cinquenta centavos

Dezoito de dez centavos

Dez de cinco centavos

Total:

Sete reais e trinta centavos

A riqueza de um homem

Não tem limites

Se não dá

Para um banho de sais

E dois escravos

Veja como incha o abdômen

Uma fatia de pão

Amanhecido

Estamos todos tão parvos

Da fome e da dor

Convencidos

Carlos Eugênio Vilarinho Fortes

Poema (01) de Carlos Galdino

Imagem: Pinterest.com

Amanhã

Amanhã a felicidade vai sorrir

Com sua boca banguela de criança arteira.

O metrô será um coração de mãe

E a Radial Leste estará livre como um tapete mágico.

Amanhã a alegria será um touro rosa correndo pelas ruas,

Lambuzando de cores os olhos de pedra da cidade

E colorindo cabeças e janelas.

Amanhã Criolo vai dar canja,

Marco vai captar o momento exato,

E Casulo vai construir uma peça lotada de gargalhadas.

Amanhã todos os faróis estarão piscando VERDE,

Na Casa das Rosas vai ter sarau,

Mariana vai parir um poema azul,

E Helô vai preparar o pão dos Elfos.

Amanhã vai ter samba na Santa,

Será meu dia de folga

E Deus vai dormir numa rede de mariscos.

Amanhã é dia de pastel na feira,

Nina vai botar uns pingos nos is,

A Paulista será só para os sapatos

E o Messias encantará um cordel.

Amanhã a felicidade banguela vai sorrir,

Porque hoje eu acordei mordido de alegria

E com uma vontade infantil de acreditar.

Carlos Galdino

Pandemia em mim

Foto: Márcio Leitão

O gesto que vaza de nós

ou para nós

e o movimento

que esgarça o céu

viram, em alguns momentos, pó

neuronal

Grãos que se grudam a axonios

e dendritos no fundo

do fundo de nós.

Quando algo ou alguém

espana a ventania

ou sacode o azul

surgem nuvens de poeira

embrulhando medos

mais quietos.

Como não há aspirador

ou desifentantes para mentes

e tempestades

talvez o melhor a fazer

é deixar o vento guiar as nuvens

e a dor

na tentativa

de desfazer os nós.

Márcio Leitão

Poema (1) de Jéssica Iancoski

Imagem: Pinterest.com (Nicole Law)

ERVILHA VERMELHA

Ontem me perguntaram se eu era uma menina

E eu não soube responder

Esse inferno de pergunta.

Não que eu não seja mulher —

Mais que isso

— É que eu sou tantas coisas:

Uma garota,

Uma amante

Uma gota,

Um semblante,

Um inverno

Um menino,

Um pingo

E um girino,

Um giro de roda

No vento leste que sopra

No ponto final em cada esquina.

Uma menina é pouca coisa

Quando eu sou tantas outras

Entre cada ervilha vermelha Do interno do punho em meu ventre.

Jésssica Iancoski

Poema 1 de Giulia Nogueira

Imagem: Pinterest.com

um poema quando nasce esparrama pelo chão

livros de poesia

amuletos panfletos etc

talhados um a um

pelo silêncio-princípio

inconformado

da sua própria capa

cidade

não almejam

servir-lhe

de portas abertas

menos ainda

de oráculos certos:

a tua procura é quem

devora por onde

pisa.

Giulia Nogueira

Poemas (18) de Marcelo Maldonado

Imagem: Pinterest.com

(das rezas)

que se
destrave o
impossível
num afago
que o
sensível se
instale
e a mim me
restaure
são e
náufrago

=============

(das entremências)

achou de bem
regar uma
pedra com a
saliva da
infância
a manhã tinha
reverberâncias
nos seus
rascunhos
entrou a rir
de um
parassempre
entalhado numa
rama d’água
deu a mão à
cor azul do
coração de
um bem-te-vi
dizem que
anoiteceu
feito coruja
com sabença
de árvores

Marcelo Maldonado

Poema (8) de Alexandre Pilati

[Doméstica]

o cheiro do frango
cozinhando na pressão
temperado com alho sal
e outras pobres especiarias em pó

arremeda

os fósforos vivos
a flor imbatível
o travesseiro alienado
a onda do mar a sorrir
a bunda cosmonáutica
o coice dos déficits

também arremeda
a mão quente

com que qualquer um
é capaz de escrever
luz avião contrapelo Liechtenstein…

não é preciso arte
para entrar de cabeça
neste pântano perfumado
que se deslumbra entre

as teias de aranha
e as casas de botão
as porcas as gelosias
furos de fechaduras
reentrâncias de insetos
no rejunte os vãos de garfos

que a poesia num repente
preenche sem titubear

apenas um corpo que mais ou menos
funcione é o que basta

um corpo em severa desatenção
em apetite sonâmbulo
um corpo buraco

quando a cozinha se enche
do cheiro de frango
cozinhando na pressão

convocando-nos
às agulhas do indiscernido

Alexandre Pilati

Poemas (19) de Iara Maria Carvalho

Na Filizola

A mercearia de papai
era a mais sortida do bairro.

Não faltavam aviamentos,
fichas de orelhão,
chiclete Ploc, cajuína
– memórias embrulhadas
em papel de pão.

Os fiados da caderneta
não davam conta 
do vasto mundo diluído
nos olhos do meu pai.

Na Filizola dos ombros,
o peso silencioso dos nascidos
pra chorar.

Minha mãe

Minha mãe costura
na Singer
todo fim de
tarde,
elegante e
sagaz
na missão de
consertar o mundo.

Como toda mãe,
sabe botar brilho
nos olhos dos filhos,
e põe na caixa de botões
os sentimentos extraviados.

Seus olhos

 – de tardezinha –
são dois botões nublados.

Iara Maria Carvalho

(Do novo livro em lançamento: Meia Porção de Sol)