Quatro poemas de “O antipássaro”, livro póstumo de Donizete Galvão, organização de Tarso de Melo e Paulo Ferraz
O MIJÃO
Fui tomar cerveja
no boteco em frente
ao edifício do Mário.
O bar nos expulsou
depois da uma da manhã.
Os bares fecham cedo.
As padarias não podem
vender mais cerveja.
Temos que respeitar
a lei do silêncio.
São Paulo, dizem,
é uma cidade cosmopolita.
Mijei atrás da caçamba
de entulho.
Mijei quente, grosso
e demorado.
E me deu vontade
de mijar nos monumentos,
nos prédios neoclássicos,
nos shoppings e avenidas.
Como a demarcar
um território nesta
cidade onde
eu possa beber e mijar
quanto queira.
Mas era hora
de ir para casa
recolhi o pinto
e tomei um táxi.
NÃO SABE
O amor que não sabe morrer
persiste no olhar do cão
abandonado que,
ao menor gesto,
abana o rabo
na espera do afago.
Está no vaso de planta
esquecido no sobrado
sem moradores.
O amor que não sabe morrer
não pretende tocar o céu.
Quer ficar aqui mesmo –
Pedestre, incauto e reles.
Não ouve a ladainha dos mortos.
Nem quer a extrema-unção.
ANJO EXTERMINADOR _ para Waly Salomão
Não me venha
com essa conversa
de anjo da anunciação.
Você vai enfrentar
um anjo exterminador.
Tateie na caverna
e encontre na sombra
esse predador ancestral
com asas de galo-índio –
pronto para golpear a presa.
Ele crava as esporas
no peito do adversário
e lhe retalha as carnes.
Com o bico,
fura os olhos.
Louco por sangue
quer o gosto da agonia.
Esqueça os versos
que os poetas sussurram
em seu ouvido.
São traidores –
anjos enganadores.
Têm-lhe ódio
quando dizem
morrer de amores.
Negam a si mesmos.
Negam os amigos.
Só têm as palavras
como seus abrigos.
NEGRUME
podem me dar tarja preta
tentem me tirar do breu
o carvão aqui sou eu
GALVÃO, Donizete. O antipássaro. Apresentação de Paulo Ferraz e Tarso de Melo, Posfácio de Antonio Carlos Secchin. Goiânia: martelo, 2018 (Cabeça de Poeta 22)