LEITURAS

Eu me debruço nas leituras do dia e o caminho é sempre para dentro de mim.

Eu sempre me encontro entre cada parágrafo. As esquinas do pensamento e os caminhos que se bifurcam mapeiam memórias.

Há uma cidade dentro de mim que não acaba, mesmo quando, ao final do dia, eu encerro a capa.

O DEGUSTADOR E A VOYEUR

O DEGUSTADOR E A VOYEUR

Já pensou que a crônica diária é como o pão com manteiga no balcão da padaria toda manhã? Tem que ser como aquele primeiro café, o primeiro que passa pelo coador: honesto, verdadeiro. A primeira palavra que se tira de si pela manhã. O pão com manteiga insubstituível, que tem a cor local da sua rua.

A crônica é a palavra que você exsuda.

Cabe tudo no breve intervalo de linhas da crônica. No caso, nesse aqui. Vai o vizinho que faz gargarejo, depois de socar o despertador. Aquele outro, que bate a porta sem falar com ninguém e aquele que diz bom dia a todos. A mocinha correndo pra não perder o trem e a avó levando o netinho pela mão para o sol matinal com vitamina D. Entra também o policial saindo do balcão da padaria com dois cafés. Um copo para si e o outro para o parceiro que está dormindo na viatura. Entra o motorista de ônibus gritando pra organizar os estudantes subindo. O ambulante do outro lado de calçada também passa rapidinho, sempre em movimento pra não perder a mercadoria pro rapa. Alguém que vira a esquina. Alguém que pesa o bife com o açougueiro, depois pega a fézinha com o número da sorte da mulher, que correu ontem, com o apontador sentado do lado do poste.

A crônica é a rua toda passando dia e noite nas calçadas e solas de sapatos da cidade toda. Parece silenciosa, mas grita na mente do cronista com suas histórias cotidianas, simples, como conversas de pé de ouvido no lotação.

Dentro do ônibus, um estudante cutuca o nariz com a unha intencionalmente deixada mais longa do mindinho e, certo do anonimato entre os passageiros compenetrados, refestela-se com as iguarias que ele mesmo fornou na cavidade nasal. Prazer e contravenção na massinha verde e adocicada na língua. Do outro lado do coletivo, uma senhora, tiazinha, flagra o garoto melequento com um prazer insustentável. Aliás, prazer de ambos: do degustador e da voyeur.

Não se contendo diante da cena inusitada, nada era além da mera natureza humana em curso e ao alcance dos olhos, a senhora, lenta e sorrateiramente, cutuca a mulher do seu lado. Temendo que a passageira ao lado faça algum movimento brusco, a senhora a pega pelo braço. Não queria correr o risco de interromper o evento em andamento. Absorta com as suas músicas no ouvido – melhor maneira de suportar o trânsito –, a passageira ao lado desperta, surpresa pela inesperada interrupção da desconhecida da meleca alheia, e dispara:

– Que foi?

– Shhh! Olha, ali, na janela! O que aquele garoto tá fazeno. Ele acha que ninguém tá vendo. Ele não pára. Gosta. Tá gostando, ele. Não olha direto pra ele não perceber.

Dạí não houve mais como manter a dignidade matinal.

– Mas a senhora tem a pachorra de me interromper pra isso? Tenha santa paciência! Cuide da sua vida. Cada um tem o café da manhã que merece e a senhora não tem nada com isso!

E era só isso mesmo essa crônica. O coletivo seguiu e ninguém mais se viu. Talvez ainda exista alguma evidência, material orgânico, memória vestigial do ocorrido, impressa no banco do coletivo. Mas isso, nem o passageiro da tarde vai reparar.

DUAS ORLAS

Duas mulheres sentam-se lado a lado. A maré murmura sons sob a Lua.

Tudo mais lhes é alheio.

Nada mais além de si mesmas. Duas presenças pairam, uma e outra, e distam de tudo mais.

Ao longo, uma multidão pergunta qual a cor das suas peles.

Surge um coro irritado: qualquer coisa sobre sexualidade.

Um abuso, mas que sem vergonhas! Isso é muita liberdade!

Até que alguém levanta a mão, clamando falta de religião. E todos descem a mão, uns contra os outros.

Duas mulheres permanecem sentadas na orla. Invisíveis, como duas mulheres. Silenciosamente sendo, com o mar e Lua.

O ÚLTIMO DIA DO ANO

O último dia do ano e você pensa: quais as coisas que ficaram do ano que passou? Logo passam na mente os versos do poeta:

O último dia do ano não é o último dia do tempo.
Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
C. D. A.

Ainda bem que um poeta imprimiu na memória do tempo, na memória de todos, esses versos simples e atemporais. Quanto mais você reflete, mais percebe que está tudo ali. Bravo, poeta! Todo o rebuliço e gritaria é uma ansiedade secular como se a vida fosse acabar, as desavenças pudessem mudar, a cerveja fosse secar, um alienígena pudesse chegar e revelar todos os mistérios. Transe geral e barulhento para a pior ressaca: constatar que o relógio não parou, a contagem não iniciou, e o Sol não đá a mínima para a poeira festiva do terceiro planeta.

Não há ressaca maior do que a de realidade. Retornar aos problemas que se mantém infensos à translação e alguma contagem de dias insignificante no universo. O despertador continua tocando cedo, o trem continua lotado, o pão continua caro e o prato feito escasso. Não há sesta e alguém menos qualificado que você contabiliza quantos minutos você demora no banheiro enquanto poderia estar trabalhando. O gerente grita, o motorista grita, os irmãos gritam, a mãe grita e o pai já lhe esquenta logo a orelha, que esse não é de gritar. O relógio não parou, as contas não pararam, os anúncios chegam de todos os lados e seus olhos mal conseguem acompanhar todas as oportunidades que inundam a sua visão em todos os monitores, vitrines, ruas e janelas. Você não entende como é possível enriquecer sem fazer nada, apenas assistindo “esse vídeo”. Há tanto sendo dito em sua volta que você não ouve mais a própria voz. Não ouve mais seus pensamentos.

O último dia do ano não é o último dia do tempo. Não precisa ser, bastaria mais cinco minutos de silêncio e olhos fechados.

DATILOGRAFIA DA CABEÇA

Tenho feito diversas notas datilografas. Inclusive, com o verbo correto seria: tenho datilografado diversas notas. Meu intuito é despertar novamente meu gosto pela palavra. Observar a estética gráfica da palavra acontecendo diante dos meus olhos – ao jeito da palavra pronta, finalizada, com serifa – tem sido realmente estimulante. Um gosto adquirido, certamente.

Essas palavras dentro da minha cabeça precisam encontrar sua forma no papel. É certo que uma vez no papel elas tornam-se silenciosas. Contudo, observe: na realidade tornam-se uma voz em potencial na cabeça de um eventual leitor. A regularidade desse processo irá consolidar o início do livro que virá.

Retomei releituras de autores que gosto. Isso tem me dado um grande prazer. Aquilo que quero escrever sempre começa como um sussurro, redarguindo com aquilo que estou lendo no momento. Se registro esse momento inicial em uma frase, logo quero dar continuidade ao que se iniciou. Uma vez datilografada, aquela ideia (que há algum tempo não mais apresenta acento gráfico) fica acenando pra mim no papel: “Venha, continue, que mais há aí nessa velha cachola, apenas esperando pra sair?”

Agora perceba como a máquina de escrever é um importante fato no processo. Essa princesa mecanográfica vai oferecer o freio, ao mesmo tempo o filtro para o turbilhão de imagens que se debatem indiscriminadamente na cabeça de quem escreve. Só assim permitindo que o fio, logo uma trama, de palavras seriadas aconteça. Daí, é se concentrar na palavra que deve vir depois, e depois, e depois. Logo, como reordenar as palavras para encontrar dentro do fluxo de palavras a ordem mais equilibrada, uma estética dentro do absurdo pessoal, vamos chamar assim. Há quem prefira chamar de coerência. Há sempre estudiosos da palavra. Mesmo para esses, o confuso momento inicial da criação da trama subsiste. Tenho para mim que pouca atenção dispensam sobre si mesmos, envoltos que estão a palavra e no texto, como se esses fossem estranhos externos à sua condição mental e humana, demasiada emocional. Mesmo quando se quer distância do objeto de escrutínio.

Somos todos o nosso texto que acontece. Escritores apenas se preocupam em cristalizar o processo em tinta sobre papel.

NOVO AGOSTO (prosa ínfima)

Eu parei de escrever em meio às mortes da pandemia e me importei pouco com palavras. Quando quis voltar a escrever, primeiro tive que voltar a ler. Eu tento encontrar quem quero ser nas palavras antes de desfiar qualquer trama. Eu me perco na substancia abstrata do meu próprio drama, que se dissolve na superfície improvável da própria arte. Eu não me pertenço na escrita que quero ser.

Aqui delimito dois estágios iniciais da minha busca. O primeiro, encontrei em Augusto de Campos. Eu ouvia a voz do próprio, na leitura de “O rei menos o reino”. Súbito um verso me atravessa, como se quebrasse a vidraça dos meus óculos com uma verdade absoluta:

E para que poetas em tempo de pobreza?

O verso não era um tiro, tampouco uma pedra, mas sua verdade é absoluta e nada mais deve ser dito. O século 21 não sorri para todos; seus habitantes tampouco.

O segundo estágio da minha busca por uma nova motivação para alguma escrita proclama o oposto. A literatura e os escritores ensinam a conciliar paradoxos. Anaïs Nin sempre escreveu diários prolíficos de ideias, críticas, mas acima de tudo, de elogios à consciência de estar viva. Anaïs Nin percebia que era preciso se afastar do vício patológico da produtividade na sociedade e se refugiava em Acapulco para períodos de calmaria. Um eufemismo para a viagem interior que um escritor precisa fazer de tempos em tempos para colocar em palavras mais ou menos claras, sensações mais ou menos complexas em uma individualidade mais ou menos definida.

Encontrei o trecho abaixo, escrito em um dia do inverno de 1947, no Hotel Mirador, de sua preferência. Ela descreve o momento, na sua intensidade suave, como um carinho em sua pele. Não apenas sua pele de mulher, sua pele de escritora, sua criatividade. Entendi que mesmo quando ela não escrevia, ela descrevia. Acredito em artistas assim: vivos dentro da sua criação. Segue o trecho:

I am lying on a hammock, on the terrace of my room at the Hotel Mirador, the diary open on my knees, the sun shining on the diary, and I have no desire to write. The sun, the leaves, the shade, the warmth, are so alive that they lull the senses, calm the imagination. This is perfection. There is no need to portray, to preserve. It is eternal, it overwhelms you, it is complete.

Eu senti a rede em que ela estava deitada. Eu poderia esticar uma rede ao lado dela e permanecer em silencio com meus papéis ou minha máquina de escrever fazendo o mesmo, ou deixando de fazer, rendido à beleza do presente. Nem tanto porque é belo, mas porque queremos senti-lo na imaginação silenciosa das palavras.

Eu não vou traduzir o trecho do original de Anaïs Nin. Quem tem inteligência de papel que lute. Aprecie na única língua, além da materna, que eu compreendo. Eu vou imaginar que poderia dialogar com Anaïs Nin, e que um dia voltarei a escrever com prazer de quem tem olhos para sorrir com palavras.

Anaïs Nin na praia, convidando ao presente, no silêncio da imaginação das palavras.

EM MEIO A PALAVRAS E SEM ACENTOS

As palavras simplesmente nao vem. Ou vem, mas nao se organizam ou nao parecem se alinhar de modo coerente ou satisfatório para que eu ache relevante me expressar. Agora, a tecla dos acentos circunflexo e til parou de funcionar. O teclado do computador se assemelha a uma máquina de escrever perneta assim. Isso me irrita levemente. Passa logo. Desde a pandemia essas irritaçoes da vida parecem nao surtir nenhum efeito prolongado em mim.
Esta manha eu me vi buscando palavras para colocar aqui. Nao pude escrever outro poema, nao penso claramente para escrever um conto, entao tudo recai sobre a escrita descompromissada da cronica.
Alguém já inventou a cronica de lamento? A cronica de indecisao e insegurança, ou ao menos a cronica de acentos quebrados? De certa forma é assim que me sinto. Alguém precisa refletir se alguma escrita ainda é válida quando as máquinas parecem perfeitamente capazes de suprir todo momento de pensamento vazio? Sobra algo além do pensamento de cento e quarenta e cinco caracteres? Todo questionamento em um texto é uma evasao. Nao há mais leitores de evasoes e por isso nao se sabe para quem se escreve em bits e bites. A escrita confessional, como qualquer ato confessional, prescinde um ouvinte, mesmo que surdo ao vazio que o locutor coloca. O espaço da palavra é o que diz ainda além da boca que cala. Eis que aqui coloca-se aquilo que eco nao tem. Esvaziado, e eu me esvazio de palavras, como se o sentido fosse corrente e coubesse nesse espaço que deveria ser preferencialmente deixado em um papel. Eu penso na iconica cena que todos conhecem como “lágrimas na chuva”. Poderia ser o pano de fundo para o qu estou tentando expressar agora. Cada cem palavras nessa rede tem realmente o sentido de um indivíduo? Esta nao é uma cronica de lamento, afinal. Antes tateia pelo espaço da memória e da folha de papel inexistente, imagine, se puder, ou ainda busque uma em um arquivo de imagens. Isso, tateia o sentido das representaçoes extracorpóreas de um indivíduo. A escrita manifesta tornou-se banal. Soube de escolas que baniram a caligrafia. Soube de autores com mais autoretratos que páginas. E minha memória me admoesta com essas assertivas para que eu pense ainda mais que as palavras nao tem uma mao que as escreva pra dizer da máquina do mundo, da estrutura da bolha de sabao, ou alguma obscenidade que acalente a pele dentro da noite veloz.
Resta-me uma frase apenas para começar a semana, começar a vida, começar a alma, atrapalhar o transito. Leio na borra de café, nas cartas, no semáforo com uma voz que nao sei minha ou o ronco absurdo dos motores.
E eu tenho em mim as distâncias da vida, o mundo incomunicável e os excessos incompreensíveis.