Cardume, de Carlos Moreira, por Adriane Garcia

Estou com as mãos em Cardume. Reservei esta semana que passou para lê-lo. O livro já está comigo há muito tempo e eu que só o tinha folheado, aguardava o instante exato. Acredito que os livros têm o seu momento em nós. Então foi isso, durante a semana eu andava de viagem com Carlos Moreira em seu cardume de palavras, enquanto refletia com ele sobre o cardume em que e com o qual vivemos.

Mas se um cardume age sem vontades individuais, pois a vontade de um cardume é sempre coletiva, o que nos leva à indagação de se há mesmo algo que se possa chamar vontade num cardume, Carlos Moreira mostra-nos que o seu é subversivo. Suas palavras se juntam para formas variadas, como se se tratasse, na verdade, de um cardume mutante, um cardume a serviço da vontade da palavra. Um cardume para fugir do cardume. Vários poemas. Vários cardumes.

Já de entrada, a epígrafe de Wislawa Szymorska: “O abismo não nos separa/O abismo nos cerca.” Sim, esta viagem, se você for um futuro leitor de Cardume, é bom que se saiba, será uma viagem nos abismos. Mas o abismo amparado pela palavra. A palavra que em Carlos Moreira é ser. A palavra é sua saída para poder ser. Da condição humana, trabalhada em Heidegger e, posteriormente, em Sartre, que vai da reflexão do tempo do homem até a sua impossibilidade de ser, Carlos Moreira faz o seu ponto de indagação e crítica, pensamento e criação. Paradoxalmente ao não ser, ele é. É poeta. E isto tem função também, em sociedade. E esta a inexorabilidade colocada:

a palavra

esta lepra

entranha

na minha pele

sua lavra

não quero saber

e digo

gosto do silêncio

da água

no fundo da piscina

a maldita

ignora meu pedido

e assina em mim

pelo avesso

o sim do seu signo

Em versos curtos e de precisão, em sua maioria, mas de maneira alguma presa numa única forma, a poesia de Carlos Moreira só obedece ao poema.  Notaremos que ele se amparou na tradição de nossa literatura poética para possuir todas as ferramentas. Se um poema pede versos longos, rimas ou não, aliterações, metáforas (e como são belas as metáforas em Carlos Moreira!) neologismos por aglutinação, se pede a forma de uma poema visual lá está. Mas longe de ser uma miscelânea, encontraremos a voz absolutamente reconhecível deste poeta, unindo tudo, numa imagética rica e muitas vezes de espanto, um ritmo que não falha nunca, este o seu fio, a densidade, a irreverência, a seriedade mesmo quando brinca, há humor suave, amargo, o tema amplo, o poeta que em muitos versos nos fará também lembrar Nietzsche e seu olhar por cima da manada. Cardume.

o porco fuça fareja

esfrega o focinho

contra raiz e terra

o corpo todo do porco

emprega a si na tarefa

de encontrar a trufa perfeita

aquela que ele mesmo

jamais comerá

porque a entrega

o porco é um poeta

Seus temas são os de um poeta solitário e solidário: Condição humana, indagação ontológica e metafísica, morte, saudade, memória, tempo, crítica à sociedade num desmascaramento do mundo, amor, existir, a relação leitor/poeta, o espanto infantil diante da mágica da natureza e, ao mesmo tempo, a natureza como um anti-idílio, o silêncio e o paradoxo que é o silêncio transmutado em palavras do poeta, a solidão, o tédio, o vazio, o uno, a destrutividade humana, a denúncia de uma convivência desastrosa, a indagação ética.

nenhuma coluna

sustentará o templo

que não construímos

deus nenhum repousará

sobre o altar

plantado no escuro

não restam deuses

nem templos

por derrubar

derrubaremos

uns aos  outros

Não há nenhuma ingenuidade em Cardume, lá estão a dificuldade de ser, a proibição de ser, a subversão de ainda assim ser, quando ser é fazer sentido, possuir e poder exercer palavra, linguagem, expressão; ser um homem-verbo, pois toda renúncia é possível, exceto a renúncia à palavra. Ser como encontro com alguma dignidade e com a beleza. Como a beleza deste poema, este mar inesquecível onde só o Cardume de Carlos Moreira foi. Enfim, um livro adorável. Brilhante.

o mar

me recebe

lambendo

meus pés

salta

em meus

joelhos

pousa

no meu peito

sua pequena

pata úmida

pede

que me deite

mais suave

que a chuva

e tudo

que somos

é bonito

simples

e antigo

o mar

é o meu cão

favorito

Um poeta necessário de sua geração.

Cardume, Carlos Moreira, editora Valer, 2013. Os exemplares podem ser adquiridos também com o autor, via facebook.

Resenha originalmente publicada em setembro de 2014, no blog Os livros que eu li. http://www.adrianegarcialiteratura.blogspot.com.br

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