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– Si ce n’est, par un soir sans lune, deux à deux,

D’endormir la douleur sur un lit hasardeux.

 

 

O corpo que se estende é de meu domínio

Paraíso só a mim e por mim prometido.

Para o inverno chuva que tomba na lama endurecida.

Sa-zonais razões enrolam meu coração em neblina, sangue e mortalha.

Meu túmulo é onda apressada para chegar na praia.

A quem pertencem os paraísos? Por que prometê-los a outro?

Prometo um corpo putrefato, paraíso partilhado, quebrado por mim.

 

Onde através das longas noites o vento é rouco? – Ouço-me.

Ele grita meu nome enquanto abre suas asas largas de corvo.

Nada é mais suave que a noite; águas descendentes, dormentes

Têmporas pálidas reinando, chuva,  permanentemente.

Não me confunda com ela/ sou aquela no meio da ponte de olhos arregalados para o muro. / Não a que chora e seguram a mão dela / sou a que seca tudo em que pega com a mão áspera e louca. / Não a beije, não sou ela./ Não a toque nem deite em seus cabelos lavados/ Sou eu que te contém, eu, só eu./ Sou aquela parada no meio da ponte, você não me reconhece?/ Não a beije, não gosto dela./ Sou a cética, a doida de pernas trocadas./ Como você ainda não sabe?/ Ela tem olhos doces e mãos quentes e eu sou aquela da navalha, dos olhos arregalados para o muro/ Você não entende e ama outra./ A Outra e seu desejo de saber desejar./ Como você não notou ainda?/ Medida, ponte, esquina, régua finita, não sou e fim.

A minha navalha

tenho uma navalha para a tua barba suja/ tenho uma navalha para raspar cabeças/ navalha cega/ fios negros a pousar no chão de anil/ afio/ corto os dedos/ olho no espelho/ ah Occam, Occam, Occam… quanta vezes te pergunto e não teu silêncio só grita escuro/ Hoje sou gravidade/ lâmina fina/ já não carrego nada sob a minha camisa diminuta, muída/ excesso..

Desisto

Sob a tua face de  vidro pode ser visto

O pescoço morto, os olhos baixos, um som ao mastigar a carne

Sob a tua face me dispo

Cara, face de vidro. Não há feridos.

Sob a tua face meus ossos quebradiços

      “porque trabalho teu rosto de palha e construo o impossível”

Talho, empalho, emparedo tua cara cara. 

Eterna efemeridade da carne,

Um rosto fundido no vidro da tua imagem.  

(R. Basílio)

sempre a estrada/ uma doença em meus ossos

sempre a estrada/ uma doença em meus ossos incorrigível/ sempre à soturna/ os dedos que não se movem/ sempre à beira/ uma perna que balança convulsivamente/ sempre a esquina/ uma cura prometida/ me dê algo para ecoar nos meus ouvidos/ ocos/ sempre a estante/ uma unha que mofa no inverso/ sempre aquele livro/ embrutece os ombros caídos, conta as sílabas do verso mal dito, a palavra natimorta da língua, a língua levantada acima do queixo, as mãos levantadas acima da queixa, o não-ter-voz cola a minha doença nos ossos e a estampa no rosto, um outro dia, outra dor agora. (R. Basílio)

Aleksandr Serguéievitch Púchkin (1799-1837)

Um chefe fraco e insidioso,
Velho galo careca, inimigo do trabalho,
Escaldado por uma glória inesperada,
Reinava sobre nós naquele tempo.

LI

E aqueles a quem li, entre amigos,
As primeiras estrofes? Quem há de
Saber deles? “Uns não são mais vivos,
Outros estão longe”, cantou Sáadi.
Sem eles, concluí meu Oniéguin.
E ela, a cuja imagem persegue
O meigo ideal de Tatiana…
A muitos a sorte soberana
Quebrantou. Feliz quem do festim
Da vida partiu mais cedo, sem
Esgotar a taça. Feliz quem
Não leu o romance até o fim
E súbito dele se despede
Assim, como eu do meu Oniéguin.

Tradução Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman

Ira

Em ira esqueço-me entre lâminas/Recorto, decoro palavras/ madeira mole de grã direita a irregular/

 Em ira desenho olhos/ cerne avermelhado e alburno claro/ um terço e meio divido pedaços fito calendários/

Em ira corto-te ao meio /admiro que tuas veias sejam tão lindas/ céu magenta e anil no fim de tarde/

Em ira nada colore mais do que corpo em sangue e carne. 

(R. Basílio)

Nomeação

Escreverei teu nome nos muros de mim mesma, que ladeiam meu corpo 

mais, ainda e tanto.

Lerei teu nome nas gavetas de mim mesma, guardando um riso morto

 cheirando a flor e madeira,

mais, ainda e tão pouco.

Embaixo das árvores, entre  gravetos e chuvas, quarando

mais, ainda e alhures.

 

Tocarei por teu nome, cantarei por teu nome,

 teu nome, teu nome, teu nome… teu nome

 tatuado em minha mente, mais, ainda, e sempre.

 

Na minha fome é teu nome que sacia

Na ansiedade do que me falta,

 mais, ainda, e tanto quanto há de ar e comida.

Escuto teu nome e não há som algum para se ouvir,

Canto de sereias descabeladas, afundadas no mar de não-ser nada além de

mais, ainda, e algures.

 

Construo uma casa para teu nome, varanda e terraço e

mais, ainda e tão pouco.

Beijo e é o gosto do teu nome que deixo na boca do outro.

 

Teu nome-lugar me contém.

Borda da piscina. Limita. Mais e ainda e sempre tão pouco.

(R. Basílio)

Saudade

Como se te perdesse, assim te sigo,

Como se te adivinhasse, assim te sirvo

De cama, de prato, de quatro

Paredes e teatro. Ponto.

 

E como se tu me permitisses, 

na minha a-geografia, meu rosto imovível.

Dilui-me em tua luz e me faz foto/grafia,

na esperança dissoluta da saudade do que não tenho,

Imagens por mim despedidas, luzes espraiadas no papel ou na argila.

E eu, mínima em an-seios pequenos e inundados de impossíveis.

Pele, osso. Vírgula. O avesso de mim, madeira-aço-ilusão.

Item lexical

Jamais escreverei teu nome novamente /dedos moventes /nada mais será para registrar tua incompletude formal. Jamais escrevei sobre teu rosto e meu horror de ti / meus olhos escurecidos não olham mais para além de mim /Jamais escreverei tuas palavras ditadas recitadas em pé/ com voz inumana/ minha boca não se abrirá para o gosto de ser tua de novo, e de novo, e de novo, e de novo… novelo enroscando-se em teu radical.

R. Basílio