T R A V E S S I A S

Narrativa de Ronaldo Cagiano

 

 

Os edifícios me ameaçam, as mãos frias do vento me sufocam.

Além dos olhares assassinos e da velocidade; pessoas enormes deslizam

ruidosas pela cidade, conduzindo dentro delas outras pessoas.

Posso vê-las quando arrisco meu olhar assombrado pelas janelas dos seus ventres.

Maura Lopes Cançado

“O sofredor do ver”

 

 

Sob um céu profano, a mesma lição todos os dias, para em cada um deles tornar-me irreconhecível: a cidade se converte na selva monolítica e gelada: matéria e circunstância para os psicanalistas. Uma geografia sinistra nesse ambiente retórico de fumaça e decadência. Fuliginosa é a manhã que, em vão, aguardam esses seres homiziados ouvindo som digital em seus tronos sobre rodas, de onde veem menores esgueirando-se entre os automóveis fazendo o pregão de bugigangas, frutas e balas.  Arsenais de vozes e ruídos se sucedem com uma solenidade improvisada no minúsculo auditório dos tímpanos. A fera enjaulada na solidão oceânica de ninguéns. Encapsulados em suas estações de trabalho, repassando e-mails e atendendo aos chamados sucessivos dos celulares, muitos deliram na miséria recalcitrante de cada dia. Ruas, avenidas, becos e vielas não escapam à aquarela insólita: artérias de cinza e enxofre, canais antagônicos onde fluem rios de vivos mortos que se entrechocam e não se olham. Orquestra de motores. A pressa fabril da engrenagem impondo um ritmo alucinado em tudo. A lógica veloz, tumultuária e vulcânica de todas as necessidades impedindo detectar a mínima parcela de consciência nos movimentos e de realidade nos sentimentos. Os edifícios formigando gente na monotonia das tarefas miúdas e enfadonhas. Essa permanente colisão de anonimatos e gestos redundantes, meus olhos em seu verde espanto, pulsações de auroras que não vingam, turismo de urubus sobre as lixeiras, fast foods cheios de pessoas vazias, gente como feras se nutrindo do inservível, escafandristas da solidão mergulhando diuturnamente na multidão abissal, bancários bovinizados por tarefas medíocres e repetitivas, a avareza do câncer e sua bizarra multiplicação de células devorando silencioso as vísceras do homem que alimenta os pombos na Praça da Sé, a pirataria que não se fatiga das blitzes, um paraguai a céu aberto na 25 de março, o tapete de logomarcas falsas cobrindo a Barão de Itapetininga,  um cemitério de sons confusos, os trens do metrô: serpente sempre igual sem sair dos trilhos impondo aos usuários o tédio que passa veloz como uma película sem fim de vidas tão apoucadas. Poluição de semáforos disciplinando o mar convulsivo e divergente de animais metálicos e uma assembléia de pedintes sobre a pista latejante. No abril em que me espelho, o amor parece sair de moda, pois inusitado é o casal entre beijos aguardando para ultrapassar a faixa de pedestres, a metrópole regurgita seus fantasmas, labareda & carnificina em rostos pressurosos dos que me esbarram, mas não me tocam. Um homem limpa a boca na camisa e tenho a sensação de ter chegado a um final de festa. O que meus olhos flagram é uma fraude, pois a alma é que reverbera todos os horrores: a energia da dor que dela emana poderia abalar a Terra. E vejo aquela mulher espiando o mundo de dentro de sua janela, sobre a qual há um toldo verde: ele funciona como uma pálpebra que nunca se fecha sobre os olhos de seu coração. Ela sofrerá como nós? Somos feras intangíveis nessa coreografia de degredos, na imodéstia do perigo e da morte. Nas igrejas, transformadas em mercados de uma fé hipnótica e bizarra e uma espiritualidade chantagista, com padres super stars e pastores eletrônicos, contrabandistas da salvação impossível, que aleluiam suas acrocabias pelas tevês e praças públicas, uma retórica melodramática e bestializante, muitas vezes escamoteando suas vidas dicotômicas (divididas entre a ereção e a oração, perdidos entre a falação e a felação). Nesses verdadeiros shoppings centers da salvação onde se impõe uma teologia predatória e carnívora e traficam a felicidade a crédito, vejo a angústia dos que (à procura da falsa prosperidade) entram desorientados e saem sem saber para onde vão. As virilhas engomadas por espermas clandestinos dos que vivem o rescaldo de pantagruélica melancolia ensinam mais que todas as ideologias. No mundo político e econômico, entre o canibalismo de uns e o terrorismo de outros, o neoliberalismo e seus fetiches (a canalhice e seus fantoches) vão construindo seus túmulos num país sem memória, cemitério dos vivos. Não sobra nada da guerra diária. Próteses humanas no lugar de almas. A vida esvai-se como água em minhas mãos. Os asfalto carunchado excrementa minhas dores. udo se desmancha nessa alvenaria de ventos. O que quero ressuscitar nisso tudo? Um faixa de gaza urbana com sua artilharia torpedeando ouvidos e emitindo certidões de óbito. Caminhos & descaminhos bifurcam-se – centopéia de mil pés. Que Dédalo projetou essas entranhas? Sou uma flor desidratada nesse imenso e incorpóreo jardim: uma orquídea autista na corda bamba. Caminho entre as obturações de calçadas inexatas e contemplo as cicatrizes na epiderme dos edifícios. Olhos exilados no além-tudo. A noite chegará sem qualquer promessa, apenas o trânsito e suas fadigas com sua serpente de faróis sob a lua. Nada vale a pena, mas a alma é grande. Acrobatas no fio tênue entre a vida e a morte. Viveramar é criminoso. Procuro na saída a antítese de tudo isso e me vejo só, sem a misericórdia de uma Ariadne. Como inventariar o caos nesse difuso concerto para arranha-céus?

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